o sermão do bom ladrão

O sermão do bom ladrão. Por José Paulo Cavalcanti Filho

Dedicado a nossos candidatos a Presidente

SERMÃO DO BOM LADRÃO

Em 1.655, o padre António Vieira proferiu este Sermão na Igreja da Misericórdia (Conceição Velha, Lisboa), perante D. João IV e sua corte. Advertindo, o Rei, sobre o pecado da corrupção pela cumplicidade. E “Bem quisera eu que o que hoje determino pregar chegara a todos os reis”, explicou depois. Como tem a ver com o Brasil em que, pelas últimas decisões do Supremo, a corrupção parece valer a pena, lembro alguns trechos.

“Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões porque os consentem; são companheiros dos ladrões porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.

“Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei. Dom fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico!?… Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas.

“Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”. E por fim restam absolvidos, nos tribunais, talvez pudesse Vieira concluir. A vingança é que, assim disse mais tarde, “Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis”.

Ao menos isso.


José Paulo Cavalcanti FilhoÉ advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.

jp@jpc.com.br

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